“Haru no Noroi”: contra certas dores não existe alívio

03/03/2021

Haru no Noroi (“A Maldição de Haru) é uma história sobre dor.

Suas personagens são receosas, indecisas, mas também valentes e determinadas – contra, muitas vezes, seus melhores interesses.

É um mangá sobre a morte e o luto. Porém, como outras histórias de seu gênero, é fundamentalmente sobre aqueles que ficam para trás. E as terríveis distâncias que estão dispostos a percorrer para não sucumbir ao desespero.

É difícil adivinhar aonde o mangá josei de Asuka Konichi pretende nos levar a julgar apenas por suas primeiras páginas. Isto porque o enredo se debruça sobre habitantes de uma realidade tão exótica à maioria de nós que parece saída de um livro empoeirado.

Haru e Natsumi são descendentes do zaibatsu Tachibana, uma das linhagens mais influentes do Japão no século XIX. Hoje, a família é uma sombra do que foi um dia, mas ainda preserva seu orgulho – e seu respeito quase fanático à tradição. Haru, filha mais nova, tem o casamento arranjado a Togo, filho de outro importante magnata.

Pouco tempo depois, ela morre de câncer. Tinha apenas 19 anos.

A doença não a levou de forma súbita. Pelo contrário, foi uma batalha que se estendeu por anos. Como tantas famílias amaldiçoadas por este fardo, os Tachibana se vêem sem propósito quando a filha finalmente morre. O fato de serem uma linhagem tradicionalíssima, que prezam união e continuidade acima de tudo, só torna a tragédia mais traumática.

Para Natsumi, a perda tem contornos mais pessoais. Mais do que qualquer membro da família, ela tornou proteger a vida da irmã como missão de vida. Sua morte a faz se sentir como um súdito que falhou a seu mestre. No velório, ela não esconde que contempla o suicídio.

Pensar em um ente querido nesses termos pode parecer um exagero, mas a relação entre as irmãs nada tem de sutil. A devoção de Natsumi a Haru era tamanha que ela decidiu mudar sua carreira e estudar nutrição para ajudar a manter-se saudável.

Quando Haru foi hospitalizada, passou a dedicar cada hora livre de seu dia a acompanhá-la no hospital. O preço desta dedicação foi a negligência completa de sua vida amorosa, podada no talo justamente na época em que Natsumi deveria estar curtindo sua juventude, aprendendo a se relacionar.

Em uma conversa com Togo, ela confessa sequer saber se gosta de homens ou mulheres. A adoração à irmã a consumiu de tal forma que não deixou espaço para qualquer exercício de afeto.

É essa obsessão doentia que faz Natsumi tomar uma decisão chocante, mesmo para um mangá que fala de suicídio e casamentos arranjados.

Contra seus melhores instintos, Haru decide começar um relacionamento com Togo, marido de Haru. Seu objetivo é menos aplacar a solidão que tentar, por todos os meios a seu alcance, manter vivo o que restou de sua irmã. Nem que seja apenas a memória de encontros passados.

Konichi equilibra tantos temas espinhosos, com tanto desapego, que é nada menos que um milagre que Haru no Noroi não sucumba à farça. É mérito da autora ter conseguido não só fazer sua premissa improvável funcionar, como apontado na experiência de Natsumi e sua família uma humanidade que todos somos capazes de reconhecer.

Cada família infeliz é infeliz a sua própria maneira, lembrava Tolstói, mas os dramas dos Tachibana são universais.

A mãe de Natsumi e Haru abandonou a família, incapaz de viver sob a felicidade postiça de um casamento arranjado. Sua madrastra fez o melhor para ser aceita pelas enteadas, mas é tão incapaz de esconder a dor da rejeição quanto Natsumi e Haru são dispostas a aceitá-la.

Togo erige uma fachada de indiferença mas nos perguntamos, página após página, se aqueles sentimentos são deles ou de sua família. “Pessoas mortas não sentem tristeza!” ele esbraveja, alto o suficiente para que saibamos que não acredita de verdade naquilo que diz.

A relação de Natsumi e Togo nunca se materializa como amor. Quanto mais aprendemos sobre suas vidas, mais percebemos que este nunca foi o ponto.

Por tradição, mas também afeto, as outras pessoas da sua vida se apressam para varrer Haru de seus pensamentos e devolvê-los a sua vida antiga. O que está realmente em jogo, eles logo aprendem, é quanto tempo conseguirão andar na corda bamba entre este esquecimento e a memória da irmã que os contamina como uma maldição.

O mangá veste seu simbolismo com orgulho. Haru significa “primavera”; Natsumi, “verão”. Os nomes de cada um dos oito capítulos acompanham o desenrolar do ano, com ênfase na passagem das estações. O primeiro e o último formam uma única frase que se torna mais sinistra quanto mais avançamos na história: “A primavera se foi”, “e o inverno virá”.

“Inverno”, pois é possível que, ao buscarem conforto, tudo o que encontrem sejam galhos secos. E se há alguma certeza é de que o percurso será longo e difícil e doloroso.

“Talvez nós não estejamos amaldiçoados” diz Togo a Natsumi “mas esse sentimento provavelmente nunca irá embora”.

Certas histórias usam o sofrimento humano como muleta para lágrimas fáceis. Outras torturam suas personagens para conquistar uma respeitabilidade que não merecem. Muitas vezes, apenas por sadismo.

Haru no Noroi pertence a um outro tipo, que prefere a descrição à explicação, a compaixão à lição de moral, a sutileza ao valor de choque. Um tipo de história corajosa o suficiente para nos olhar nos olhos e admitir que contra certas dores não existem alívios.

É pouco. Porém, como Togo e Natsumi nos mostram, mesmo um pouco de honestidade pode salvar o futuro de uma pessoa.

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1 Comentário

  1. Jefferson

    Eita meu ❤️❤️❤️

    Responder

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