Miyazaki e Oshii na mesma página?

01/31/2015

Hayao Miyazaki, a grande lenda viva do mundo do anime, deu recentemente uma declaração bombástica: a indústria de animação japonesa vai mal porque está “cheia de otakus”. Aos fãs de plantão: não se assustem. O mestre do Studio Ghibli não os odeia. A sua queixa, na verdade, é bem específica, e sem dúvida é partilhada por uma boa fatia de seu público alvo.

Miyazaki critica criadores que não sabem como humanos de verdade funcionam. Obcecados pela cultura interna do mundo otaku, não passam tempo suficiente “observando pessoas reais”, e vivem a vida “interessados apenas em si mesmos”. O problema é o excesso de auto referência; uma indústria com olhos apenas para si mesma e que, por consequência, reduz mais e mais o rol de coisas que sabe representar. Daí as hordas de garotas moe, heróis shounen estereotipados e a oferta infindável de personagens idênticos em histórias idênticas em revistas e séries de alta circulação.

Válido ou não, não pude deixar de sorrir com o comentário do diretor. Primeiro porque as diferenças de Miyazaki com a animação de seu país não são de hoje. Desde os longínquos anos 1980 ele nunca hesitou em olhar para fora, para a fartura visual de estúdios como a Disney, em vez de improvisar uma linguagem com poucos recursos e baixo orçamento, como fizeram, por exemplo, os visionários do gênero mecha. Mas, sobretudo, porque seu resmungo é quase idêntico à alfinetada que recebeu anos atrás de seu antigo colaborador, Mamoru Oshii.

Sky Crawlers e os adultos-criança

Criador de Ghost in the Shell, inspiração de Matrix (na minha opinião, um melhor contraponto para Blade Runner), Oshii é quase tão famoso quanto o criador de Viagem de Chihiro. A diferença, óbvia para os familiares com sua obra, é o tom mais adulto, sério e socialmente crítico que adota em seus filmes.

Em uma entrevista de 2008, quando seu filme Sky Crawlers foi indicado para o festival de Veneza, Oshii deixou isso bem claro. Os filmes de Miyazaki são ótimos de se ver, ele disse, mas são maravilhosos, otimistas, bonitos. O problema é que nem só de beleza é feito o mundo. A fantasia glamorosa de Miyazaki, conquanto um “doce para os olhos”, não é real o suficiente.

A crítica não poderia ter vindo em momento melhor. Sky Crawlers é uma metáfora da infantilização na era contemporânea, do mito do “adolescente eterno” e da cultura otaku, especificamente. O argumento é o de uma sociedade que produz adolescentes que não crescem, e que os emprega como bucha de canhão em batalhas aéreas encenadas. Os jovens (chamados Kildren) vivem vidas ocas, com muito álcool, sexo e violência, até o momento em que são abatidos em frente às câmeras às custas de uma boa audiência. Quando mortos, são substituídos por outros jovens idênticos em aparência e comportamento: nesta sociedade, tal como na nossa, o importante não é ser criativo, mas se misturar à tribo.

Em seus reality shows aéreos, há apenas um piloto que jamais foi derrubado. Ele é, sugestivamente, um adulto. Mais sugestivamente ainda, seu codinome é Teacher. Os Kildren são livres para curtir uma breve vida de libertinagem, mas sabem que, cedo ou tarde, seu destino é morrer nas mãos do Teacher. A trama acompanha o drama de um casal, Kusanagi e Yuuichi, que se desesperam com o vazio da adolescência e desejam crescer. Kusanagi tornou-se mãe e se angustia com o fato de que, em alguns anos, suas filhas serão adultas e ela continuará uma criança. Em um final que só poderia ser mais didático se Oshii nos explicasse com um quadro negro, Yuuichi larga tudo e parte para um duelo com Teacher, argumentando que, para se libertar de sua prisão adolescente, precisa “matar o seu pai.”

Sky Crawlers é um soco no estômago para adolescentes e jovens adultos, e sua mensagem só ficou mais forte pelo fato do filme ter sido lançado junto ao levíssimo Ponyo. Mas eu me pergunto se Miyazaki, ou pelo menos o Miyazaki de 73 anos, que se aposentou com uma reflexão sobre o complexo militar-industrial japonês da Segunda Guerra, discordaria da conclusão. Mais do que nunca, os dois gênios parecem estar na mesma página.

O fascínio dos animes com a magia ocidental

O fascínio dos animes com a magia ocidental

  Quem tem o hábito de acompanhar mangás e animes já deve ter reparado que esse meio tem um pé no esotérico. Ao lado de mechas, uniformes escolares e doces baratos – muitas vezes, ao mesmo tempo – a cultura pop japonesa parece ter uma queda por magia e ocultismo....

“Numenera”: Em um bilhão de anos, o que significará ser humano?

“Numenera”: Em um bilhão de anos, o que significará ser humano?

2016 pode estar apenas começando, mas alguns jogos, de tão aguardados, nos fazem pensar que o tempo não anda. Para mim – e, imagino, tanto outros que acompanham a renascença dos RPGs isométricos – é o caso de Torment: Tides of Numenera. O game da inXile foi anunciado...

Quando os games questionam o progresso

Quando os games questionam o progresso

Parece óbvio que mídias tão contemporâneas como os videogames sejam otimistas em relação ao futuro. Por mais que Deus Ex ou Fallout nos lembrem de consequências nefastas da tecnologia, a ideia de que “progresso” - em alguma forma -  é algo bom não precisa de...

Boletim

Recebas as últimas atualizações do nosso boletim em seu email.

Arquivo

Categorias

Parceiros

Últimas Atualizações

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *