‘Nóinín’: os horrores que enxergamos com o canto dos olhos.

08/13/2025

Seres humanos têm medo de muitas coisas. Mas poucas, sobretudo nos dias de hoje, são mais sinistras que a incerteza.

Somos criaturas de relógios, pontos para bater, notificações para responder, smartphones que nos relembram de compromissos que sequer pedimos para que guardassem.

Vivemos acostumados com coisas que funcionam – ou, pelo menos, que não funcionam de forma consistente. A ideia de que há coisas ao nosso redor que não são o que parecem, que podem não apenas nos machucar ou atrasar nossa rotina, mas sacudir os pilares de nossa própria realidade, é um pesadelo tão insuportável que confinamos aos mitos e à fantasia. 

Como escrevi em um post anterior, isso não previne que a realidade, de fato, saia do prumo de vez em quando.  

Os eventos extremos causados pela mudança climática e a emergência de novos extremismos na política são apenas dois exemplos de fenômenos que mostram quão frágeis nossas ideias de ‘estabilidade’ ou ‘rotina’ podem ser.

Como Rip Van Winkle, que cochilou durante a época da colônia e acordou após a independência, em um país que até então não existia, não temos como saber quanto do nosso mundo realmente continuará no seu lugar amanhã. 

Mas essas grandes mudanças não são as únicas que tememos. Vidas individuais, afinal de contas, também podem ser chacoalhadas, viradas do avesso, transformadas para além do reconhecimento. 

Nóinín, de Márie Zepf, é sobre uma dessas vidas.

O ‘Outro Mundo’ para além da mitologia

Já aviso de antemão que essa será uma resenha estranha. Para começar, Noinín é um romance em verso

Não quero dizer ‘prosa poética’ ou qualquer coisa do tipo, mas uma história literalmente composta de poemas. Uma coletânea de poemas, se quiser, em que cada texto faz a vez de capítulo.

A comparação mais próxima que posso fazer é com If All the World and Love Where True, livro de Stephen Sexton que narra a história do câncer de sua mãe por meio de poemas sobre Super Mario World. (Sim, você leu isso certo).

Em segundo lugar, é um livro escrito em irlandês, sem, até o momento, tradução para qualquer outra língua (até onde eu saiba).

Reconheço que isso, por si só, já o torna inacessível a praticamente todos que leem esse blog. Mas sinto que preciso escrever sobre ele mesmo assim; se nada mais, para que mais pessoas saibam que ele existe. Pois trata-se de um livro tão chocante, escrito com tanta coragem, que precisa ser visto para ser acreditado.

E, também, para que meus leitores saibam que o irlandês existe, e não é apenas uma língua morta usada em contos de fantasia. (Por esta razão, fiz questão de incluir também o texto original ao lado das minhas traduções).

Cena da série Buffy: A Caça-Vampiros, que usou um aviso em irlandês sobre a inauguração de uma faixa de ônibus em Dublin como um o texto de um feitiço. Como escrevi em outras ocasiões, esse não foi um caso isolado.

Nóinín (em irlandês, “Margarida”) é uma garota que se apaixona por um amigo virtual. Ele diz se chamar ‘Oisín’: mesmo nome do mortal que, na mitologia irlandesa, atravessou um portal para o mundo das fadas para viver um romance impossível.

Nóinín, também, sente que atravessou um portal para uma realidade mais colorida. O mundo habitual, de carne e osso, perde o brilho comparado a seu namoro perfeito (e platônico).

Logo nos primeiros poemas, é possível notar que há algo de esquisito, quando não de horripilante, em seus sentimentos:

Ouço os 

Oisín-professores

falando sobre as 

Oisín-matérias

nas

Oisín-salas de aula.

Como um Oisín-almoço

e falo

Oisín-Irlandês

Durante todo o dia

sou uma Oisín-garota

Um garota de Oisín.

Éistim le

hOisín-mhúinteorí

ag caint faoi

Oisín-ábhair

Sna

hOisín-seomraí ranga.

Ithim Oisín-lón

agus labhraím

Oisín-Ghaeilge.

An lá ar fad

Is Oisín-chailín mé

Cailín Oisín.

Como seu xará da mitologia, a “Oisín-garota” em que Nóinín se transforma entende que não pode viver com um pé em cada mundo. Ela se distancia de sua amiga Eimear, parte para encontrar Oisín…

… e nunca mais é vista com vida.

Balanço um pouco minha cabeça

Fecho meus olhos.

Com os olhos fechados,

ainda vejo Nóinín:

            um cadáver pálido

            fantasmagórico,

Suas asas vermelhas

vazando da beira da cama

          grosseiramente pintadas.

Croithim mo chloigeann píosa beag,

Dúnaim mo shúile.

Le súile dúnta,

chím Nóinín go foil:

           a corp geal bán

          taibhsiúil,

a sciatháin smeartha i ndearg

ag sileadh thar chiumhas na leapa

           go míshlachtmhar.

Não há jeito fácil de dizer: Nóinín é a história de uma adolescente raptada, estuprada e assassinada por um predador. E de uma outra adolescente, a amiga que deixou para trás, reaprendendo a viver sob o peso deste trauma.

Zepf não exagera nos paralelos com a mitologia, mas é evidente que que seu livro flerta com a lenda de Oisín. Não só por conta do nome (falso, aliás) de seu vilão.

O romance é uma história sobre a fronteira porosa entre dois mundos: o físico e o digital. A estrutura do conto enfatiza a dualidade. A primeira parte é contada do ponto de vista de Nóinín; a segunda, de Eimear. No mito, Oisín retorna da Terra da Juventude e descobre que o mundo em que vivia não existe mais. Em Nóinín, é Eimear quem abandona sua juventude, aprendendo da forma mais cruel possível o que significa ser uma adulta.

Que Nóinín tenha sido escrito para um público infanto-juvenil é ainda mais chocante que a tragédia anunciada de seu enredo. Mais ainda se considerarmos que foi publicado na Irlanda, país que ainda processa as sequelas de décadas de supremacia política da Igreja Católica. Efeitos particularmente sentidos quando se trata de crimes sexuais – incentivados por décadas de complacência a serem varridos para debaixo do tapete.

Zepf não foi a única escritora a ter denunciado o efeito dessas sequelas – sobretudo, para jovens mulheres. Claire Keegan, em seu Pequenas Coisas Como Estas, jogou luz sobre as lavanderias de Madalena: campos religiosos de trabalho forçado em que garotas problemáticas eram jogadas para “desaparecer”. Éilís Ní Dhuibhne, em Aisling nó Iníon A (“Aisling ou Filha A”), escreveu sobre as agruras de uma adolescente abusada, forçada a viajar escondida à Inglaterra para realizar um aborto.

Talvez por conta da simplicidade de seus versos, Nóinín me parece ainda mais brutal que esses dois livros. São poemas que pedem para ser lidos ingenuamente, desde os versos mais lúdicos (“Voz de homem/como/chocolate ao leite”) aos que cruzam o limiar do terror:

O carro além disso tem 

              um porta-malas

              tagarela.

Ele conta uma história triste

              escrita no

              DNA de Noinín

Tá búit an chairr

            caiteach

            chomh maith.

Scéal gruama aige,

           scríofa in

          DNA Nóinín

Zepf disse ter escrito seu livro como um romance em verso por se tratar de um gênero ágil, que estimula pessoas a lerem histórias inteiras em uma ou duas sentadas.

Como ela explica, é uma forma de fazer sua mensagem chegar justamente a quem mais precisa dela: jovens (e adultos) entregues ao ritmo frenético, irreflexivo das redes sociais. Uma forma de combater fogo com fogo, por assim dizer.

Se Noinín realmente irá salvar pessoas do brain rot não sou capaz de dizer. Seja como for, não dá para negar que Zepf tira o máximo do formato.

Não é preciso ler atentamente cada poema para entrar no estado de espírito das duas protagonistas. Sobretudo quando elas sucumbem a um instante de crise.

Quando Eimear se lembra da foto de Noinín morta, que lhe confirma que sua amiga não está mais em seu mundo, por exemplo, ela nos diz:  

Acordo em minha própria cama

 

O corpo dolorido

a respiração pesada

 

lembrando

 

da foto.

 

A foto que destruiu

                       estragou

                       contaminou

                       ofendeu

                       quebrou

                             cada coisa boa que existe ali

                                                              que existiu ali 

 

                                                             em pedacinhos

 

Musclaím i mo leaba féin,

 

le corp nimhneach

agus

anáil theann

 

sula gcuimhním ar

 

an ghrianghraf.

 

An ghrianghraf a scrios

                                a mhíll

                               a mhaislaigh

                               a bhris

                                      gach rud maith dá bhfuil ann

 

                                              a raibh ann

             

                                            ina smidiríní

 

Noutras passagens, o trauma é tão afiado que ‘quebra’ os poemas em algo que lembra o concretismo brasileiro:

Diz o texto: “Estou caindo agora. Caindo lentamente até o chão. Meu corpo bate contra os tacos do piso. Não posso cair mais baixo. Não olho uma segunda vez [para ter certeza]”.

Só assim nos manteremos seguros

Em um post anterior, comentei sobre um artigo que associou a popularidade do gênero fantasia ao desencanto da nossa época.

Um mundo em que cada rio ou árvore pode ser um deus, como um filme do Studio Ghibli, é um mundo em que precisamos tomar cuidado com tudo o que fazemos. Afinal, qualquer movimento em falso pode desagradar uma divindade e provocar uma represália.

A modernidade industrial pode não ser perfeita, mas passa ao menos a ilusão de previsibilidade – da mesma forma que câmeras de segurança e carros blindados ajudam certas pessoas a viverem sossegadas.

A fantasia, segundo o artigo, estaria para tudo isso como um parque de diversões ou um cosplay: uma performance em que fingimos vivenciar a magia, sem experimentar o terror existencial que ela traz consigo.

Nóinín mostra que essa ilusão é, com o perdão da palavra, mais ilusória do que parece. 

O livro sugere que nosso mundo não é menos poroso – ou menos opaco – por ser mediado pela tecnologia. 

Que, tal como as fadas e assombrações de nossos antepassados, ainda existem horrores visíveis apenas com o “canto dos olhos”: entidades terríveis ou insidiosos demais para que pessoas normais, autointituladas “de bem”, estejam dispostas a reconhecer que existem. 

E que, se o abismo de fato existe, e está fora do nosso controle, tudo o que podemos fazer é encará-lo de frente: 

Nesse lugar

          andamos um mundo inteiro

                            fisicamente

           e digitalmente

com nossos olhos abertos

                                        alertas

pois é assim

          e assim apenas

que nos

          manteremos

                          seguros.

                  

Ina áit sin,

          siúlann muid an domhain

                        go fisiciúil

             is go digiteach

lenár súile oscailte

                      airdeallach

mar is sin

         agus sin amháin

a choinneoidh

           sábháilte

                        muid.

 

 

 

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