“Benign Land”: o que a história pode aprender com a mitologia

05/19/2025
Benign Land_Vinicius Marino

A mitologia, como a história, sempre parece estar acabando.

A frase não é minha, mas de Dom Ford, que acaba de lançar um livro genial sobre mitologia em videogames contemporâneos.

Ford não fala em “acabar” no sentido de uma narrativa que chega ao fim (como as intermináveis séries da Netflix, que sempre inventam uma desculpa para emendar uma nova temporada). Seu ponto é mais simples: vivemos na ilusão de que estamos livre dos mitos.

“Mitologia” é coisa de povos primitivos que queimavam pessoas dentro de homens de palha. “Nós”, pelo contrário, somos ilustrados e nos guiamos pela razão e pela ciência.

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É por isso que nosso planeta anda tão perfeito. Yahya Hassouna/AFP

Não é preciso ser muito desconfiado para suspeitar que essa conta não fecha. Mitos não dizem respeito apenas a deuses, heróis e itens mágicos. Eles estão presentes em vários aspectos da nossa vida: das chatices do cotidiano aos pilares do nosso sistema jurídico. 

A crença de que o futuro “vai consertar” os problemas do presente, de maneira que não precisamos nos preocupar com os custos humanos e ambientais das nossas ações.

A ideia, como disse Geralt de Rívia, de que “ódio e preconceito nunca serão erradicados” – e, portanto, de que é “normal” acharmos que nossos colegas de espécie são inferiores a nós.

O princípio de que o amanhã é sempre melhor que o ontem – e que, portanto, “passado” é uma velharia que podemos descartar sem dó.

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Grafite na cidade de Belfast, capital da Irlanda do Norte.

Esses mitos não sempre são visíveis da mesma forma que deuses que atiram trovões ou cachorros de três cabeças. Mas eles têm uma voz em nosso presente – muitas vezes, também em nossas perspectivas de futuro.

É sobre essa bagagem mítica que fala Benign Land, um dos jogos históricos mais surpreendentes – e menos convencionais – que conheço.

‘Uma viagem pelo subconsciente da Irlanda’

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Não é tão óbvio enxergar o que faz de Benign Land um jogo mitológico. A bem da verdade, não é tão fácil enxergar o que faz dele um jogo.

Trata-se de um walking simulator sem condições claras de vitória, originalmente concebido para ser parte de uma instalação artística em uma igreja dessacralizada de Belfast. Seu ‘desafio’ consiste em navegar cada uma das fases em direção a um portal que nos leva a outra cena – e a tirar sentido das imagens abstratas – e, por vezes, assustadores – com que amarra sua narrativa.

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O jogo fica mais claro se levarmos sua proposta em consideração. Segundo seu desenvolvedor, Leandros Ntolas, Benign Land surgiu de ideia de fazer uma experiência interativa sobre a oíche shamhna (“írra róuna”), o tradicional feriado irlandês celebrado na passagem do 31 de outubro ao 1º de novembro.

Muito antes do “Dia das Bruxas”, ou mesmo de bruxas, existirem, a data era tida como um momento em que o véu entre os mundos se tornava fino. Brechas às vezes surgiam, de onde humanos podiam inadvertidamente cruzar para uma outra realidade – e entidades não-humanas tinham a possibilidade de visitar os mortais. 

Como tudo na mitologia, há uma pegadinha. O mundo de lá e o mundo de cá nem sempre estão sincronizados – de onde as lendas de humanos que cruzam o limiar apenas para descobrir que viajaram também no tempo. 

É essa dessincronia temporal que amarra as cenas de Benign Land. Nosso avatar – uma entidade “do outro lado do véu”, perdida em terras humanas – salta de época para época, explorando a Irlanda desde a pré-história até os conflitos na Irlanda do Norte, passando pela introdução do cristianismo e pela época da Grande Fome.

É como se pairássemos pelo passado, refazendo as pegadas que seres humanos deixaram – e nos enroscando em cada rasgo que seus traumas, angústias e atrocidades abriram na trama do mundo. 

Benign Land_Vinicius Marino

Antiga prisão de Long Kesh, também conhecida como Prison Maze. Hoje demolida, a penitenciária foi um dos maiores símbolos do conflito entre separatistas e o Estado britânico na Irlanda do Norte. Foi lá que o soldado do IRA Bobby Sands morreu em uma greve de fome em 1981.

Pode parecer um objetivo grande demais para um jogo de apenas 40 minutos, que mal possuí diálogos ou qualquer tipo de narração. Mas Benign Land miraculosamente funciona, ainda que exija alguma familiaridade com os episódios que retrata.

Por ter sido originalmente uma instalação, o jogo atraiu um público mais diversificado do que a maioria dos aventures games comerciais. Parte dos jogadores foram pessoas sem grande familiaridade com games, mas que haviam vivenciado pessoalmente os conflitos entre católicos e protestantes.

Aqui, gostaria de fazer parênteses para deixar claro o qual sério tudo isso foi. Hoje, a ‘terrorismo’ não é a primeira coisa que vem à mente quando pensamos em Irlanda. Que seriados como Derry Girls consigam nos fazer rir com a cena de uma patrulha antibombas arruinando a ida de adolescentes a um show é prova de que a memória das explosões ficou para trás.

Mas não tão para trás.

As Troubles – como chamamos os conflitos entre 1960 e 1990 – geraram ressentimentos que persistem nos dias de hoje, feridas na paisagem urbana de cidades como Belfast que estão longe de fechar.

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Lírio branco, símbolo usado pelo IRA para honrar membros mortos em combate. As muralhas que cercam o caminho do jogo são as chamas “Muralhas da Paz”: divisões que até hoje segregam bairros católicos e protestantes em Belfast.

As Troubles podem ter acabado no mundo “real”. Porém, tal qual em Mementos, o metaverso coletivo de Persona 5, os sobreviventes continuam presos suas antigas causas, traumas e pesadelos.

Benign Land_Vinicius Marino

Memorial a membros do IRA em bairro nacionalista de Belfast. Nos últimos anos, a bandeira palestina (direita) se tornou tão popular quanto o tricolor irlandês. Bairros protestantes, pelo contrário, hasteiam bandeiras de Israel. É um sinal de que ambos os lados se aferroam a um mito de outra espécie: de que a atual guerra da Palestina é a continuação de um mesmo conflito de que eles próprios foram participantes.

Ao apresentar seu jogo para testemunhas das Troubles, Dtolas notou algo interessante. Por não jogarem com frequência, estas pessoas tinham dificuldade em navegar  com os controles do jogo. Como resultado, acabavam “travados” com maior frequência no meio das fases.

O paralelo com suas próprias experiencias não passou despercebido a elas: seus avatares estavam presos no passado, tal qual eles próprios, continuavam presos nos eventos de décadas atrás.

Quando chegamos ao final do jogo (que é, também, seu começo), e nos deparamos com a mensagem “o Tempo não é uma linha. É um ciclo” – é difícil não sentir um calafrio. Pois isto significa que esses traumas jamais irão embora. Ou, pior ainda, que uma experiência similar de dor e terrorismo nos espera no futuro.

Que lição podemos tirar de tudo isso?

Benign Land_Vinicius Marino

Na sua vertente popular, “Halloweenizada”, a oíche shamhna traz uma lição de moral. Há seres entre nós que não são humanos. Eles não são exatamente “maus”, mas não custa nada lhes fazer uns agrados para que nos tenham em alta estima.

“Gostosuras ou travessuras” é uma política de boa vizinhança.

Jogando Benign Land, lembrando da minha própria experiência passeando pelas ruas de Belfast, tenho a impressão de que a lenda traz uma lição para adultos também. 

O nosso mundo pode ser poroso. E o que encontramos quando cruzamos seus portais não será a mesma coisa que apavorava os irlandeses da pré-história. Se o Outro Mundo é uma distorção da nossa realidade, cada pessoa, de cada época distinta irá povoá-lo com seus próprios monstros.

Como diz uma personagem do meu livro:

Talvez [a Morrígan] nunca tenha sido uma deusa da guerra. Talvez a gente só pense nela assim porque os homens do passado eram guerreiros e não sabiam ver o mundo de outra forma. Talvez ela apareça de algum jeito pra todo tipo de pessoa, assim como todo mundo tem algum buraco escuro em que tem medo de cair

Ainda que tais buracos escuros não existam   – pelo menos, não literalmente – pensar neles nestes termos pode nos trazer uma claridade que a razão sozinha não é capaz de propiciar.

Pode, por exemplo, nos ajudar a explicar – ou, falhando isto, a aceitar – por que nosso mundo, às vezes, parece virado de ponta cabeça. Ou por que a humanidade frequentemente parece estar sem chão, assombrada por erros de gerações passadas.

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