‘Expelled!’: uma ode à desobediência

03/17/2025

Expelled_Game_Vinicius_Marino

Se uma cartomante me dissesse, anos atrás, que meu primeiro crédito num jogo comercial seria um game britânico sobre um internato feminino nos anos 1920, eu perguntaria se ela não havia saído de casa com o baralho errado.

Não é que o Vinicius do passado consideraria a proposta pouco interessante (pelo contrário!). Mas seria algo tão longe de minha zona de familiaridade – e posição geográfica – que não veria como eu poderia ser de algum auxílio.

Felizmente, como nos jogos do estúdio Inkle, a vida nem sempre progride de forma linear. E o segredo que encontramos atrás de uma linha obscura de diálogo às vezes é mais recompensante do que um tesouro no fim de um dungeon. 

É com prazer que anuncio que Expelled!, jogo de que participei como QA tester, acaba de ser lançado.

E está imperdível.

Not Elegant

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Há algo de claustrofóbico, quando não de carcerário, na instituição da escola. Que sujeitamos indivíduos a esta tortura justamente nos anos em que nossa imaginação opera com todos os pistões é prova de que a bússola moral de nossa sociedade, se ela funciona de todo, está fundamentalmente quebrada.

Se isto é verdade hoje, era ainda mais o caso para a Inglaterra de 100 anos atrás, quando o colosso de um sistema engessado de classes, ferido de morte na Primeira Guerra Mundial, ainda não havia soltado o último suspiro.

Estamos no território de Memórias de Marnie e Vestígios do Dia, em que classes sociais têm o peso de castas, aristocratas são paparicados por mordomos e governantas, e meninas eram trancafiadas em internatos para aprenderem os fundamentos da “vida virtuosa”. 

Verity Amersham, protagonista de Expelled!, é praticamente uma inimiga pública dessa ordem social dedicada a garantir que os pobres nunca vejam a luz do sol e os ricos nunca careçam de uma plebeu para lhes trazer o chá  da tarde em uma bandeja de prata. 

Filha de pais humildes, matriculada como bolsista em um internato para meninas ricas, a garota sente na pele o que tal sistema representa. Uma das alunas mais populares da escola cai de uma janela em circunstâncias misteriosas. Verity imediatamente é culpada pelo ‘crime’ – nem tanto pelos fatos, mas porque sua condição a torna o perfeito bode expiatório.

Ou seria isso mesmo?

Na superfície, Expelled! é uma comédia sombria sobre uma menina ‘da quebrada’ – no contexto da Inglaterra de 1922 – numa escola em que boas alunas têm privilégios de nobres e bagunceiras são jogadas fora junto com o lixo (uma versão britânica do núcleo escolar de Spy X Family, portanto, embora Jon Ingold, escritor do jogo, não curta animes e provavelmente me mataria se soubesse que fiz esta comparação). 

Na prática, o jogo da Inkle subverte nossas próprias expectativas sobre moralidade em games para ressaltar os absurdos da vida escolar.

Ao contrário da maioria dos jogos com sistemas morais, que “douram a pílula” da maldade para que não rejeitemos interpretar vilões, Expelled! nos premia narrativamente por desobedecer. 

Quanto mais maléfica Verity se torna, mais opções de ação nos são abertas – e mais podres descobrimos atrás dos vitrais medievais e roseiras que adornam o internato. 

De mentiras brancas e sonecas na aula, logo nos flagramos explorando catacumbas, apagando colegas com clorofórmio e vencendo o Demônio (sim, ele mesmo) em seu próprio jogo.

O resultado é uma declaração de guerra à própria ideia de conformismo, em que “tocar o terror” torna-se um imperativo moral – e literal – diante de um microcosmo de sociedade que não merece ser levado a sério.

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Mais do que isso não posso contar. Nem tanto por spoilers do enredo, mas porque há algo de mágico, na falta de palavra melhor, no modo como Ingold tece sua narrativa com o mínimo de exposição, sem pressa para nos guiar até a saída ou medo de que nos perdamos pelo caminho.

Expelled! não tem NPCs ou quest markers para nos apontar a solução de puzzles. Nossa sensação de progresso é, às vezes, tão obtusa quanto a consciência de Verity. O jogo é recheado de citações em latim (curadas pela minha colega historiadora, a genial Kate Cook) raramente traduzidas ou explicadas pelas personagens.

Nada disso está lá para “trollar” quem joga. Mas para deixar claro que o roteiro confia na gente. Seja para pesquisar referências literárias por conta própria, seja para tocar fogo no parquinho.

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Expelled! Está disponível para PC, Switch e iPhone/iPad.

Faça-se um favor e questione a autoridade você também.

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