
Oisín e Niamh, personagens do romance A Trama do Mundo, imaginados pela Gisella Pizatto.
Interrompa-me se já ouviu essa história antes.
Em algum momento em algum lugar, um mortal encontra uma entidade de outro mundo. Ela o convida para conhecer sua casa, longe do domínio das pessoas. O mortal aceita.
O outro mundo é inacreditável. Em pouco tempo, contudo, a maravilha dá lugar à saudade. O mortal retorna à sua casa e descobre que ela não existe mais.
O tempo não passa da mesma forma do lado de cá e do lado de lá. O que para ele foi uma aventura de poucos dias, para as pessoas e lugares que conhecia foram séculos.
O desejo de habitar, por um instante que seja, um mundo diferente, faz com que condenasse o mundo que de fato existia.
Variações dessa história podem ser encontradas nos mais diversos países, do mito de Oisín, o guerreiro irlandês que viajou à Terra da Juventude (Tír na nÓg), à lenda da montanha de Lanke, na China.

Representação da lenda chinesa de Lanke. Segundo a história, um homem decide observar dois senhores jogando um jogo de tabuleiro. Quando decide ir embora, ele percebe que os jogadores eram imortais – e que a partida havia durado não horas, mas séculos.
Para a surpresa de ninguém, ela também é frequente na cultura pop. As personagens de Cowboy Bebop frequentemente invocam Rip van Winkle e Urashima Taro para dar sentido ao cabo de guerra de suas vidas, esticadas entre um passado problemático e um presente sem sentido. Em Mawaru Pengruindrum, a versão japonesa da lenda dá as caras como um diário – não à toa, partido ao meio – que passa de mão de mão ao longo dos episódios.

O diário de Momoka em Mawaru Penguindrum. A arte da capa representa o palácio do rei dragão, entidade que recepciona Urashima no fundo do mar.
Os detalhes da história são menos importante que sua elasticidade. Como mostra o jogo Benign Land, de que escrevi aqui antes, o Outro Mundo é uma metáfora versátil.
Ele ilustra os efeitos de um vício ou compulsão tanto quanto a lealdade a um ideal impossível; a nostalgia por um mundo que se foi tanto quanto o receio do porvir.
Certos medos, afinal de contas, vêm em atacado na história humana: o de ficarmos para trás, de nos dessincronizarmos com aqueles que amamos, de nos perdermos dentro de nossas fantasias – de temermos nosso sonhos de tal forma que deixamos de vivê-los.
De, como diz a letra da bela canção de Cowboy Bebop, sentir que
Todas as coisas que deixei do outro lado
Nunca poderiam ser muito pior que isso
Mas eu conseguiria ir até lá?
Mas será que essa lenda, a despeito de seu poder, é mesmo a história apropriada para nossos tempos?
A Trama do (Outro) Mundo

Oisín e Niamh, personagens do romance A Trama do Mundo, imaginados pela Gisella Pizatto.
Essa pode soar uma pergunta estranha vinda de alguém que acaba de escrever uma nova releitura desse mesmo conto.
Meu romance, A Trama do Mundo, é justamente um livro sobre o Outro Mundo, protagonizado por alguém que já vive, de certa forma, no limiar entre realidade e fantasia.
Nísia (que atende pelo nome de Oisín Cosmaker) é uma cosplayer profissional. Seu trabalho é trazer à vida personagens de anime – para si mesma, até certo ponto, mas sobretudo para os outros.
O Outro Mundo que a assombra é um tanto mais sombrio. Anos atrás, antes de ser acolhida no mundo da costura e das convenções, ela abriu mão de tudo o que tinha por uma aventura autodestrutiva.
Esse capítulo de sua vida foi encerrado. Mas, como a a mitologia ensina, ninguém que pisa no Outro Mundo volta da mesma forma. Como Spike Spiegel procurando a morte, ou Ringo imitando sua irmã mesmo 15 anos depois de sua morte, o presente lhe estará fechado enquanto não fizer as pazes com o passado.
— Eu amo Oisín. Não há nada que eu desejaria mais que tê-la aqui, comigo, para sempre. Mas eu sei que ela pertence a outro lugar. Dizem que uma selkie sempre volta aos mares quando encontra sua pele roubada. Oisín não é uma selkie, mas eu sinto que ela, também, teve alguma coisa arrancada de si. E até que volte aonde ela está escondida, todas as pessoas que conhecer, todos os lugares por onde passar serão apenas um pernoite até seu destino.
— Se ela precisa voltar — Nahans considerou as palavras com cuidado — é porque já esteve lá antes.
— É o que ela diz. Não com palavras, ela não me conta nada. Mas há algumas espécies de medo que rosto algum é capaz de esconder. Medos de lugares desconhecidos. Medos de lugares que conhecemos bem demais.
Da pesquisa inicial à publicação, trazer A Trama do Mundo à vida me custou dez anos. Evidentemente, eu não teria insistido no projeto se não acreditasse no valor desta história.
Mas, após uma década imerso no Outro Mundo metafórico do livro, retornei ao mundo dos vivos com uma outra opinião sobre o que esse tipo de lenda tem de importante.
Um presente desencantado…

https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/08/05/semana-comeca-com-previsao-de-tempo-nublado-e-aumento-de-temperatura-maxima-em-sp.ghtml
Muito tempo atrás, li um artigo que juntava algumas ideias interessantes sobre o mito do Outro Mundo.
Segundo Alan Jacobs, seu autor, o conceito de um mundo paralelo, habitado por seres misteriosos, vinha da ideia de que estávamos sujeitos a forças que a razão humana não era capaz de explicar – muito menos de controlar.
Isso incluía maravilhas, visões proféticas, magia. Mas também crianças trocadas, deuses vingativos, assombrações.
Com o tempo, o medo do incerto falou mais alto. Com a ajuda de uma nascente sensibilidade moderna, as pessoas desencantaram o mundo, reduzindo-o às leis da ciência e a formas mais organizadas de teologia.
Como os tranquils da série Dragon Age ou os ciborgues de Shadowrun, abriram mão do deslumbre com a magia em troca do frio mecânico da sociedade industrial.
Para a surpresa de ninguém que um dia foi criança, esse desencanto trouxe ressentimentos. O risco de visitar a Terra do Desejo do Coração continuou fascinando as pessoas, ainda que não tivessem a coragem de confiar numa fada que se provaria uma bean sí.
Daí teria surgido a fantasia. A ficção não-realista, a cultura pop, o próprio cosplay (no caso de Nísia) seriam, assim, um paganismo fake; um parque de diversões mental construído à moda de um multiverso animista; uma forma de simular a emoção de cruzar o véu – da mesma forma que um perfume traz a memória de um campo de lavanda, mesmo que nunca tenhamos visto a flor na vida.

https://www.metropoles.com/sao-paulo/impressionante-veja-como-beco-do-batman-virou-rio-com-17-min-de-chuva#google_vignette
Em segundo lugar, esse desencanto fabril da era contemporânea pode ser tudo, menos inofensivo e previsível.
O fato dos donos do dinheiro do mundo serem evangelistas das big techs é apenas a expressão mais clara desse fenômeno. O capitalismo é movido a risco – seja no grande cassino do mercado de ações, seja na ameaça de insegurança que usa como porrete para obrigar as pessoas a entrarem na linha.
O mundo encantado, consumista, fake da cultura pop dança a mesma música.
Ainda que, nas condições certas, a fandom pode ser um espaço seguro, o mercado do entretenimento é regado pela insegurança. Esta ansiedade vai das coisas mais inócuas – o FOMO de não estar assistindo ao último anime ou de ter perdido a promoção da última editora – às mais sinistras – o medo de descobrir que nossas personagens favoritas, tais quais as fadas da mitologia, são apitos de cachorro para forças mais perigosas.

Militantes de extrema-direita em convenção do PSL durante campanha de Bolsonaro em 2018. https://veja.abril.com.br/coluna/radar/eleitores-de-bolsonaro-vao-em-convencao-fantasiados-de-super-herois/
Por razões editoriais, descrevi A Trama do Mundo como um livro de fantasia. Seu enredo, de fato, envolve muitas coisas que não são explicáveis pela nossa vã filosofia. Nísia e seus amigos suspeitam que são peças de jogo manipuladas pelos Deuses Antigos. Há evidências suficientes para acreditar que estão certas.
Mas o motivo de eu incluído essas fantasias é porque acredito nelas – se não como fatos, ao menos como conceitos para navegar as incertezas do presente.
Timothy Morton, grande ícone do pensamento ecológico, diz ser um animista (escrito assim mesmo, riscado, de propósito).
Um ‘animista’ é alguém que acredita que coisas não-animadas são pessoas. Um animista, segundo sua formulação, é alguém que trata todas as coisas como pessoas, independente de serem pessoas ou não.
Não se trata de fé, mas de entender que há um propósito em tratar aquilo que escapa do domínio humano com respeito. Em muitos aspectos, é uma questão de segurança.
Não só para as coisas, mas também para nós mesmos.
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