Entrevista: o papel dos jogos em um mundo em crise

07/21/2025

Na última semana, tive o prazer de revisitar o tema em um bate papo muito legal com a equipe do Estudos Medievais – um dos melhores podcasts nacionais voltados à história. Ao longo de 50 minutos, falei da minha própria trajetória e também das minhas expectativas para o futuro dos jogos – e dos historiadores – num futuro próximo.

Alguns dos destaques da nossa conversa:

Historiadores estão acostumados a ignorar os jogos. E nós sofremos as consequências.

Quantas vezes você viu alguém descrito como “historiador da arte”? Ou  uma“historiadora do trabalho”? Ou “expert em história política”? Ou ainda “estudioso de história militar”? 

Agora, quantas vezes viu alguém se descrever como historiador dos jogos? Ou pior: especialista em brincadeiras?

Não é que jogos e brincadeiras tenham sido completamente ignorados (historiadores falam do tema desde pelo menos os anos 1930). Mas a sociedade industrial em que vivemos é, em boa parte, fundamentada sobre a noção insana de que a única coisa possui qualquer valor é o trabalho. 

O jogo, por ser algo inerentemente improdutivo, é portanto mais do que inútil. A nao ser, é claro, que ele seja distorcido em alguma coisa que valha dinheiro. De onde a ladainha tão comumente repetida de que jogos são “uma indústria que lucra mais que Hollywood” ou com franquias que “bateram X milhões de vendas”. 

Essa resistência em valorizar jogos e brincadeiras pelos seus próprios méritos tem seu preço. Jogos existem desde antes do Homo sapiens sapiens surgir na Terra, mas ainda estamos engatinhando para mapear como essas atividades moldam nossa cultura.

A ‘Revolução Digital’ saiu pela culatra

Mais ou menos vinte e cinco anos atrás, quando as humanidades abraçaram de vez o universo digital, o clima era relativamente positivo. A que pesassem os medos com a tecnologia, tínhamos pelo menos a esperança de que algo bom podia ser feito a partir de pixels e algoritmos.

Hoje, a vibe é bem diferente. Entre a aliança do Vale do Silício com a direita neofascista e o colapso ambiental (acelerado pela proliferação dos datacenters), é difícil não concluir que a ‘virada digital’ foi um tiro pela culatra. A ideia de que jogos poderiam substituir os livros de história, popular na época em que a franquia Assassin’s Creed era um neném, parece absurda numa época em que a indústria de games mal consegue pagar seus funcionários.

Nós, que pesquisamos esses problemas, estamos trabalhando duro para reverter as coisas. Não à toa, o tema do último congresso da Digital Games Research Association (DiGRA), de que tive o prazer de participar duas semanas atrás, foi “jogos na encruzilhada”. As perspectivas não são boas. Mas, como dizem os irlandeses, ni neart go cur le chéile (“não há força senão juntos”). 

Videogames têm prazos de validade

Um livro de 1894.

Abra um livro publicado no século XIX  e você poderá acompanhar as histórias de Bentinho e Capitu, Dr. Frankestein e seu monstro, como se tivessem sido escritas hoje. 

Games, porém, estão em uma situação muito mais precária. Vários jogos simplesmente não rodam em sistemas modernos ou, se o fazem, parecem tão estranhos a sensibilidades modernas que é até mesmo difícil entendê-los. 

Se jogadores de hoje em dia reclamam de Witcher 3 por ser “travado”, que dirá de um jogo lançado nos anos 1960.

The Summerian Game (1968), um dos primeiros videogames históricos. Fonte: https://www.acriticalhit.com/sumerian-game-most-important-video-game-youve-never-heard/

Adicione a isso o fato de que a preservação de games é algo problemático. Seja por pressão dos detentores de direitos autorais, seja por falta de investimentos em museus e midiatecas, seja pela nossa dependência em plataformas de distribuição (que podem sair ao ar de uma hora para outra), é difícil saber até quando um jogo eletrônico irá durar.

Esse é um ponto que não podemos deixar de fora quando falamos da relevância cultural dos games. Em alguns aspectos, a mídia possui mais em comum com o teatro, a dança ou a arte de performance do que com livros ou filmes. 

Sim, games podem ter enorme influência enquanto estão ‘em cartaz’. Mas, eventualmente, sobreviverão apenas na nossa memória. Talvez nem isto.

O futuro não é digital

Para contornar todos esses problemas, muita gente que estuda ou produz games passou a se interessar por jogos analógicos.

É notável que a DiGRA – que, como o “D” em seu nome indica, surgiu para lidar com jogos digitais – tem aberto mais e mais espaço para experiências analógicas. A ponto de seu ultimo encontro ter contado com uma sessão especial dedicada a jogos de tabuleiros.

Dizer que o futuro está nas mãos de board games, card games, larps ou RPGs de mesa talvez seja um exagero. Videogames ainda são uma indústria gigantesca, seja em termos de mercado, seja em sua pegada cultural.

Mas há um apelo crescente em jogos que não necessariamente nos obrigam a destruir o meio-ambiente ou vender nossas almas para serviços de plataformas.

Há também um interesse crescente em produções artesanais, projetos autorais, historias pessoais – obras, de uma forma ou de outra, que injetam um pouco de humanidade em um mundo cada vez mais plataformizado.

Zines feitas por Florence Smith Nicholls, game designer e expert em arqueologia digital. Fonte: https://florencesmithnicholls.com/2025/04/09/how-to-create-a-video-game-archaeologist/

Sozinhas, nenhuma dessas iniciativas irá resolver os problemas de uma indústria em crise.

Mas saber que podemos viver – possivelmente, melhor – com menos é um pensamento mais revolucionário do que parece. Sobretudo para o universo geek,  que por tanto tempo associou sua identidade ao consumismo.

 Vocês podem conferir minha entrevista inteira clicando nesse link.

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