Em um artigo passado, argumentei como histórias distópicas, a despeito das boas intenções, às vezes contribuem para o exato problema que vieram para resolver.
Na tentativa de nos alertarem para os perigos do fim do mundo, acabam se tornando uma profecia, colocando este apocalipse com um destino inevitável. E tirando das nossas mãos qualquer responsabilidade por dirigir o mundo a um lugar melhor.
Evidentemente, nem só desse tipo de história vive a cultura pop. Não é preciso procurar muito para encontrar obras que caminham no sentido contrário: incentivando-nos (em tese) a tomar nosso destino nas mãos.
Metaphor: ReFantazio, game da Atlus que conquistou uma bateria de prêmios ano passado, sem dúvida mirou nessa demanda. O jogo foi louvado como um exemplo de “política em vídeo games feita do jeito certo” e “uma resposta brilhante àqueles que dizem que política não tem espaço em vídeo games”.
À primeira vista, a reputação é merecida. O jogo é ambientado em um país fantástico assolado por um regime tirânico, que passa por sua primeira eleição em décadas. O protagonista é membro de uma comunidade oprimida, vista como raça inferior pela elite política. Fraco e isolado, ele se aferra à empatia por necessidade. Apelar aos melhores anjos de nossa natureza é sua única arma diante de um mundo que lhe privou de qualquer outro tipo de poder.
Seu principal oponente é Louis, um revolucionário impiedoso, partidário de uma concepção radical de meritocracia em que a força é o único equalizador. Em sua sociedade, todos podem tudo – desde que sejam fortes o suficiente para impor sua vontade e defendê-la de futuros pretendentes.
Lançado no mesmo ano em que Donald Trump foi reeleito, não é difícil entender porque o jogo ganhou corações. Na superfície, Metaphor é um grito de guerra contra o individualismo e a boçalidade autoritária que tem corroído as fundações da democracia em vários países. E, de quebra, uma fantasia de poder que nos tenta com a possibilidade de colocar o mundo de volta nos trilhos.
Mas será que essa mensagem realmente passa da superfície?
Que o Washington Post tenha chamado Metaphor de “O jogo mais inteligente do ano” é o bastante para levantar algumas dúvidas. Se o jornal acredita tanto na mensagem do jogo, porque capitulou à interferência de Jeff Bezos, bilionário apoiador de Donald Trump, e jogou no lixo seu editorial em apoio a Kamala Harris?
Qual o sentido de batermos palminhas para um jogo supostamente politizado se, assim que pousamos o controle, retornamos à tirania da nossa vida cotidiana, impotentes e desinteressados em mudarmos nossas ações?
“Se tiver de escolher entre um pesadelo e um novo sonho, pode apostar que apostarei no sonhador!” Se apenas o Washington Post tivesse tido a mesma coragem…
Reconheço que é injusto cobrar esse tipo de resultado de uma obra de ficção – nenhum criador, por mais bem intencionado, tem controle sobre como seu trabalho circula.
Mas não é apenas na recepção que Metaphor parece menos necessário do que se pretende.
Fiel às convenções do RPG eletrônico – e, especificamente, à franquia Megami Tensei, de que é um spin-off – Metaphor encontra seu combustível na violência. Embora a trama do jogo orbite uma eleição, a maior parte dos candidatos faz sua campanha na base da força. E a vitória, quando chega, vem na esteira de uma boss fight.
No papel, nosso protagonista se apresenta como um anti-Louis: um representante dos fracos, disposto a refutar a visão de mundo cão-come-cão de seu algoz. Na prática, vencemos Louis tornando-nos um Louis ainda mais forte e truculento – e descendo a lenha em todos que se colocam ou nosso caminho.
Ou os criadores estavam secretamente torcendo para o vilão, ou estamos diante de um jogo que não acredita em sua própria mensagem.
A hipocrisia da cultura pop engajada
ReFantazio não foi o primeiro jogo de sua franquia a flertar com a hipocrisia. Persona há anos para conciliar histórias sobre liberdade, rebeldia e autonomia pessoal com mecânicas que nos recompensam por baixar a cabeça, acertar as questões da prova, e tornarmo-nos um Cidadão de Bem®.
O protagonista de Persona 5 fazendo uma prova de geometria. Exatamente o tipo de experiência fantástica, revolucionária e fora-da-caixa que videogames foram inventados para proporcionar. Arsène Lupin ficaria emocionado. /sarcasmo.
Mas Metaphor e Persona não são casos isolados. Histórias não são apenas enredos, listas de personagens, relações de “coisas que acontecem”, de que podemos nos informar simplesmente lendo uma wiki.
Elas são forma, tanto quanto conteúdo. E o jeito como contamos uma história – quem selecionamos como protagonista, quais mecânicas sustentam o jogo, em qual ordem narramos os fatos, quais metáforas e figuras de linguagem trazemos à tona – é tão parte de sua mensagem como os lugares comuns que suas personagens repetem.
“[Fantasia é] mais que wishful thinking. Mais que ficção. [É] algo capaz de afetar realidades para além de seus limites.” Faça como eu digo; não faça como eu faço.
Não basta ter o coração no lugar certo. Jogos com mecânicas que premiam o combate, a repetição, o acúmulo ou o progresso, como Metaphor e tantos outros, dificilmente vão nos estimular a rejeitar estes valores.
Uma oferta interminável de mesmices naroukei e franquias infanto-juvenis que se repetem há 15 anos não vão encorajar fãs de anime a pensar diferentes. A que pese a eventual mensagem inspiradora perdida entre os tropos do último mahou shoujo do momento.
Um cinema ecocida, que destrói mais o meio-ambiente filmando blockbusters do que as emissões de carbono de aeroportos inteiros, de nada servem para conscientizar o mundo a respeito da crise climática. Não importa quantas mensagens ecológicas a gente encontra nas letras de sua música-tema.
E um cenário cultural meticulosamente montado para promover essas coisas, que acha certo que remasters de franquias caquéticas quebrem a perna de artistas independentes, e que nos força a bater palma para cada nossa mediocridade do momento, nos joga de volta ao problema inicial: histórias cínicas, que preferem temer o fim do mundo que imaginar formas de evitá-lo.
Levando os ‘hits’ menos a sério
Esse problema vai muito além da cultura pop – e muito além do que um mísero autor, como eu, é capaz de apreciar. Há quem diga que sofremos de uma falta crônica e milenar de imaginação – e precisamos resgatar formas ancestrais de pensar para conseguir fazer frente à morosidade da vida moderna.
Mas, no que diz respeito a nosso cantinho do mundo, minha proposta é mais modesta. Penso que teríamos muito a ganhar se levássemos obras como Metaphor: ReFantazio menos a sério; se aprendêssemos que fábulas ralas sobre temas importantes não nos ajudam a superá-los; se conservássemos mais energia para pensar sobre as histórias que acompanhamos – e fizéssemos um esforço para valorizar formas diferentes de dar sentido às nossas vidas.
Como escreveu Haruki Murakami (em um livro que já citei aqui antes):
E você? (Estou usando a segunda pessoa, mas é claro que isso inclui a mim também).
Você nunca ofereceu uma parte do seu Eu a alguém (ou alguma coisa) e recebeu em troca uma “narrativa”? Será que nunca confiamos alguma parte da nossa personalidade a algum grande Sistema ou Ordem? E, neste caso, será que este Sistema em algum ponto já não nos pediu alguma espécie de “insanidade”? Será que a narrativa que você possui é real e verdadeiramente sua? Será que seus sonhos são realmente os seus próprios sonhos? Ou será que são visões de outras pessoas que podem a qualquer instante se transformar em um pesadelo?
Murakami fala de questões muito mais sérias que a falta de imaginação e ousadia de games e outros blockbusters.
Mas deixar que que obras que não acreditam em suas próprias mensagens, como Metaphor: ReFantazio, pensem por nós, pode ser igualmente vazio.
E igualmente perigoso.
Se chegou até aqui e gostou do que leu, aproveite para conhecer Expelled!, jogo em que eu trabalhei – e que, ao contrário dos RPGs da Atlus, realmente acredita em sua própria mensagem.
E aproveite também para conferir meu romance, A Trama do Mundo, que é justamente sobre as histórias que (cerzem a cultura pop) e as histórias que nós, fãs, inventamos sobre estas histórias.
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